Educação e Pandemia: ASPUV entrevista o professor Luiz Carlos Freitas
A pandemia da Covid-19 mudou a dinâmica do Brasil e os reflexos, por consequência, dão-se também sobre a educação. Ganham destaque questões relativas ao ensino a distância e ao trabalho remoto.
Para falar sobre Educação e Pandemia, a ASPUV entrevistou o professor titular da Faculdade de Educação da Unicamp, Luiz Carlos de Freitas, renomado estudioso e autor de diversos livros na área educacional.
Na entrevista a seguir, Freitas analisa a massificação da EaD nos moldes hoje colocados, cenários para a carreira docente e fala sobre uma acentuação do processo de privatização da educação pública.
ASPUV – Ganhou destaque, neste momento de pandemia, o debate sobre a ampliação da EaD, do ensino básico ao superior. Aqui em Minas mesmo, temos o programa Estude em Casa da rede estadual de educação. Considerando-se as especificidades brasileiras e limitações da modalidade, a substituição das aulas presenciais pelas remotas surge, de fato, como uma alternativa razoável?
Luiz Carlos de Freitas – A pandemia pegou a todos de surpresa e, portanto, as ações chamadas de ensino remoto, com algumas exceções, são improvisos que o momento emergencial impôs como forma de se manter contato com os estudantes. Elas não se caracterizam como Ensino a Distância (EAD), que costuma fazer uso de plataformas de aprendizagem previamente preparadas e testadas, com objetivos definidos de aprendizagem de conteúdos específicos.
Da mesma forma que a questão dos conteúdos, aparece também o problema do acesso que tende a ser desigual e vinculado a condições socioeconômicas dos estudantes. Em alguns países, isso tem sido resolvido com distribuição de tablets para as populações que não têm acesso. No nosso caso, persistem os problemas de condições de moradia que atingem uma parte significativa dos estudantes.
Tudo isso faz com que tenhamos um cenário bastante instável tanto na educação básica como no ensino superior – especialmente se considerarmos a maneira relapsa como o Governo Federal tem lidado com a pandemia e a impossibilidade de prevermos sua duração ou fases.
Não bastasse tudo isso, a pandemia atinge as cidades com intensidades diversas fazendo com que não se possa estipular soluções padronizadas de alcance geral. Aparentemente, as instituições (básicas ou superiores) terão que pensar estratégias específicas, ligadas ao seu entorno, de acordo com a realidade de seus estudantes.
Algum tipo de contato com os estudantes é importante ser mantido, a questão é para que. Se for para tentar continuar, em casa, o que se estava fazendo nas instituições, amplificaremos a desigualdade educacional. Mas se for para manter algum vínculo da instituição com seus estudantes visando prestar-lhe ajuda, conhecer seus dilemas e até fornecer algum apoio para continuar seus estudos, penso que é válido.
No entanto, deve se deixar claro que, pelo menos no âmbito do ensino público, isso não substitui aulas presenciais e nem deve ser contado como horas ou dias letivos. Os interesses específicos de professores e estudantes devem, neste momento, ser sobredeterminados pelos interesses coletivos e de garantia dos direitos de aprendizagem de todos os estudantes. Solidariedade é a mensagem do vírus nesta pandemia e não individualismo.
ASPUV – No lugar de aulas remotas, devemos pensar na redistribuição do ano letivo para 2021 ou até depois?
Luiz Carlos de Freitas – Não se passa por uma pandemia como esta sem algum prejuízo, mas devemos tentar evitar ao máximo os impactos prejudiciais. Uma das maneiras é encararmos os anos de 2020 e 2021 como um ciclo e reinventar o currículo destes dois anos como um bloco temporal único de disciplinas – sejam semestrais ou anuais. Existirão exceções, como por exemplo, os estudantes que estão em vias de se formar tanto no ensino médio como na universidade. Mas estes casos devem ser tratados de forma específica. Em alguns países, há estratégias específicas para estes estudantes, principalmente onde estão retomando as aulas, de forma que se possa permitir que concluam seus estudos, pois outros estudantes terão que ingressar no sistema público em 2021.
A experiência de greves prolongadas que obrigaram a adiar semestres inteiros pode ser utilizada, mas não só. Uma revisão dos conteúdos que estavam planejados para este período, “lives”, adição de estudo dirigido e elaboração de trabalhos de síntese podem ajudar – sem prejuízo dos encontros presenciais quando estes se tornarem possíveis – de forma a equalizar o desempenho dos estudantes ao longo de 2020/21.
Neste momento, no entanto, isto está inviabilizado seja pelo momento de dor que afeta as famílias, seja pela incerteza financeira destas, o que exigirá todo um trabalho de atenção que ultrapassa a questão educacional propriamente dita.
ASPUV – O debate sobre a EaD ganhou mais visibilidade neste momento, mas esta é uma questão que já permeia a educação há anos. Vemos, por exemplo, a explosão de cursos de graduação e pós a distância. Quais as implicações dessa massificação, nos moldes que temos hoje no país, para a educação brasileira?
Luiz Carlos de Freitas – A educação a distância tem o agravante de que, mesmo com acesso e bons sistemas, não resolve a questão da aprendizagem dos estudantes que é sempre diversa e exige a participação presencial do professor para estabelecer a devida relação entre tempo adicional e ajuda apropriada. Estes dois condicionantes da aprendizagem são essenciais. Um sistema “personalizado” de ensino, montado como Ensino à Distância, não dá conta deste equilíbrio – mesmo com tecnologia interativa.
A EaD é um sistema que é elaborado e registrado em algoritmos que estão programados para dar “alguma” ajuda ao aluno, mas não aquela ajuda específica que ele pode precisar. A melhor forma de se personalizar o ensino é diminuir o número de alunos em sala para que os professores possam dar mais atenção a cada um, levando em conta a situação específica de cada estudante.
Há outras questões além da pseudo-personalização da EaD. O uso de tecnologias demanda que o estudante fique por um tempo prolongado na frente de “telas” que apresentam informação ou exercitação. Ocorre que este tempo tem um limite de exposição possível que, se ultrapassado constantemente, pode levar a prejuízos no desenvolvimento postural e psicológico dos estudantes. Estudantes mais velhos não podem ficar mais de 2 horas frente a telas e menores não podem passar de uma hora.
Há ainda o problema da privacidade de dados que são captados por tais sistemas e que podem ser acessados por terceiros, vulnerabilizando a vida privada dos estudantes e, finalmente, a questão da auditoria dos algoritmos constantes da plataforma que precisam ser certificados por pesquisadores independentes para garantir que de fato podem ensinar aquilo que prometem. Alguns destes problemas são responsáveis pelo alto índice de evasão de alunos que se engajam em programas de formação por EaD.
ASPUV – Já temos notícia da demissão de professores e sua substituição por robôs em disciplinas de EaD. Qual cenário se avizinha para a carreira docente? Esse caso que falamos acima foi de um grande grupo de educação privada. Podemos fazer uma relação direta entre explosão da EaD, precarização do trabalho e crescimento da rede privada?
Luiz Carlos de Freitas – De fato, a profissão de professor – à medida que a EaD avançar – sofrerá o impacto que já podemos testemunhar em outras profissões. Como todo o conhecimento e habilidades tendem a ficar embutidos, na forma de trabalho morto, no interior dos sistemas, o trabalho vivo do professor é dispensado ou reformulado, com impactos desastrosos. No caso da educação, não só a automação mas também a inteligência artificial será um poderoso elemento de tentativa de se substituir a figura do professor – totalmente ou em parte. No Japão, robots já conseguem passar em vestibulares em universidades.
A tendência, especialmente no setor privado, será colocar podiuns nas salas administrados por um “tutor” que, certamente, terá um salário muito mais baixo que o do professor de hoje. No caso do ensino à distância, robots poderão operar sistemas e desempenhar tarefas de ensino e até correção de provas.
No entanto, a qualidade de formação destes estudantes em situações como estas deixará a desejar e o mercado de trabalho certamente começará a fazer distinções que afetarão a vida profissional também dos estudantes. Os melhores postos de trabalho e mais rentáveis estarão reservados para aqueles que possuam condições de frequentar presencialmente as melhores escolas e universidades.
ASPUV – Muito tem se falado da pandemia como um exemplo real do esgotamento do sistema neoliberal em que vivemos. Como, então, devemos repensar, especificamente, a educação a partir daqui?
Luiz Carlos de Freitas – A educação sofrerá muitos impactos no pós-pandemia. Note-se que já tínhamos antes dela uma diminuição substantiva do financiamento público para as escolas e universidades públicas. Com a pandemia haverá clima para ampliar este corte de financiamento e obrigar a educação pública a migrar para fórmulas empresariais privadas.
Não acredito em um esgotamento rápido, no Brasil, do modelo neoliberal. Pode haver uma maior “domesticação do mercado”, mas o fato é que todas as fórmulas econômicas que dispomos neste momento estão com dificuldades para promover a retomada do crescimento mundial. A tentativa neoliberal fracassou onde foi tentada, mas continua sendo a única carta que o capital tem na mão, neste momento, para garantir sua reprodução. Tanto é assim que, mesmo aqueles que são oriundos de uma direita crítica ao atual governo federal, defendem as fórmulas de ajuste neoliberal.
A educação sofrerá com a privatização em todos os níveis com a implementação de vouchers que vão procurar ser justificados a partir da ideia de salvar empregos nas empresas educacionais privadas. A escolas confessionais vão pegar carona nisso, pois também estarão sob pressão. Os vouchers são “bolsas” ou valores fixos que serão entregues aos pais e estudantes para que eles paguem, com dinheiro público, sua matrícula em escolas públicas, privadas ou confessionais. Com isso, o dinheiro público vai sendo transferido para a iniciativa privada e, como não existem dois dinheiros, vai faltar para a escola pública – sem contar a queda de arrecadação. No caso do ensino superior você ainda terá o Future-se.
Por tudo isso, hoje, temos que continuar e ampliar a luta pelo ensino público de gestão pública.
(Fernanda Ponzio – Assessoria de Comunicação da ASPUV)