Violências diárias, dificuldade de inserção e pouco espaço na tomada de decisões: o racismo na UFV
“Ela (assistente social) pegou todos os meus documentos, organizou eles na mesa e falou assim: ‘olha, não tem como aceitar sua matrícula’ (…). Eu falei: ‘eu não estou entendendo, porque eu trouxe todos que você pediu, todos os documentos estão aqui’. E nessa hora eu comecei a ficar muito afobado, eu comecei a suar, eu comecei a chorar, eu comecei a ficar desesperado (…). E ela falou assim: ‘é, mas acontece que você não faz o perfil dos estudantes dessa universidade’. Eu perguntei: ‘qual o perfil que tem de estudante? Porque isso não era algo prescrito no edital’”.
O depoimento é do estudante do curso de Ciências Biológicas, Gleydson Emílio, sobre a sua confirmação de matrícula na UFV. Então morador de Belo Horizonte, o jovem teve o pedido negado na primeira tentativa. Precisou voltar a sua cidade para buscar novos documentos que, segundo conta, não estavam previstos na relação inicial. Ao retornar a Viçosa para a segunda e última tentativa, quase teve a matrícula negada. Foi salvo por uma segunda assistente social, que interferiu na situação e efetuou a sua inscrição. Gleydson é negro. Ingressou na UFV por três modalidades de cota: egresso de escola pública, por renda e étnico-racial. “Essa segunda chance, eu entrei no PVB e, na hora que eu cheguei lá, tinha uma fila gigante só de negros. Não via um branco sequer na fila. E foi de cara o momento que eu percebi: ‘gente, se a questão é burocrática apenas, será que é só negro que tem dificuldade para arranjar documentação, então?’”, questiona o aluno.
Essa foi apenas a primeira dificuldade enfrentada por Gleydson na UFV e ilustra parte das violências e opressões diárias enfrentadas pelos negros na universidade. “Ser um estudante negro na UFV é, acima de tudo, juntar forças todos os dias para acordar e seguir em frente. Porque você sabe que, no meio do seu dia, vai ver alguma coisa racista acontecendo ou com você ou com as pessoas ao seu redor. Tem muitas coisas que as pessoas fazem e elas não percebem ou não problematizam o ato. É o fato de eu estar na fila do RU e as pessoas a todo o instante fiscalizarem a bolsa para ver se a bolsa não está aberta. Quando você está na BBT, a pessoa fala ‘gente, vou dar um pulinho ali, mas toma conta das minhas coisas’ como se, se sumir, foi você quem roubou, então, já vou te pedir para tomar conta daquilo (…). Tem várias formas diárias de você morrer e renascer”, avalia o estudante do curso de Engenharia Agrícola e Ambiental e integrante do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), William Rubens.
O número de universitários negros cresceu no Brasil nos últimos anos depois da implantação de ações como a Lei de Cotas. Mas a desigualdade ainda é evidente. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2005, 5,5% dos negros entre 18 e 24 anos cursavam uma graduação. Em 2015, esse número chegou a 12,8%. Mesmo assim, o percentual representava menos da metade do de jovens brancos nas universidades nesse mesmo ano, que era de 26,5%.
Em programas de mestrado e doutorado, o número de estudantes negros também cresceu: passou de 48,5 mil em 2001, para 112 mil em 2013, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Os negros, no entanto, representavam menos de 29% do pós-graduandos do país. Algumas universidades já adotaram as cotas também para a pós-graduação, não é o caso da UFV.
A Aspuv procurou o Registro Escolar da universidade com o objetivo de levantar o número de negros matriculados na graduação e na pós-graduação. Porém a solicitação não teve resposta.
Professores Negros
Poucos negros na graduação, poucos na pós e poucos na docência. Segundo a pesquisa Docentes Negros no Mundo dos Homens Brancos, realizada pelo cientista social Flávio Conceição, apenas 6,43% dos professores de graduação da UFV são pardos e 1,74%, negros. A divisão por gênero se dá da seguinte maneira:
– Homens: 92,70% são brancos, 6,37% são pardos e 0,94% são negros.
– Mulheres: 89,22% das são brancas, 7,49% são pardas e 3,29% são negras.
“Esses professores negros dentro da instituição também têm dificuldade de avançar em cargos de coordenação, exige algum espaço de decisão. Então você tem, por exemplo, pouquíssimos professores coordenadores de curso, coordenadores de projeto, coordenadores de ações de ensino, pesquisa e extensão, nas pró-reitorias, a gente praticamente não tem nenhum representante negro. Nas comissões onde as decisões da universidade se passam, você não tem representantes negros. Isso tudo caracteriza de forma perversa o racismo institucional”, comenta o professor do Departamento de Educação, Edgard Leite de Oliveira.
O pouco número de negros na docência engrossa uma outra percepção: a de que aos negros cabem, hoje, funções mais operacionais na UFV. “Muito provavelmente, a grande maioria dos negros está na parte de serviços, especialmente, nos serviços terceirizados e aí, mais especialmente, na parte de limpeza e de jardinagem da universidade. Os papeis, os status mais elevados, provavelmente, devem estar sendo ocupados por funcionários brancos. Isso não significa que não haja funcionários negros em cargos importantes, mas, se tiver, muito provavelmente devem ser minoritários”, analisa o professor visitante do Departamento de Ciências Sociais da UFV, Sales Augusto dos Santos.
Primeira negra à frente da Aspuv
No ano em que chegou ao seu 55º aniversário, a Aspuv elegeu a sua primeira mulher negra presidenta, a professora do Departamento de Economia Doméstica, Junia Marise Sousa. “Ser mulher dentro de um contexto sindical já é uma experiência bastante forte. Ser mulher negra é muito mais. Primeiro, porque vai enfrentar os mesmos preconceitos, o racismo velado, aquela insatisfação que muitas vezes está no sentido de falar ‘poxa, mas será que aí que ela deveria estar mesmo?’ (…). Mas também tem uma responsabilidade muito grande, porque o fato de ser mulher negra estando à frente de um sindicato é também uma possibilidade de reafirmar ao meus: ‘olha, é possível estar aqui!’”, comenta.
Entre as tantas pautas de luta do sindicato, também está a questão étnico-racial. Nesse sentido, o Grupo de Trabalho Política de Classe para Questões Étnico-raciais, de Gênero e Diversidade Sexual atua em parceria com movimentos sociais de Viçosa. Uma das ações já realizadas foi uma série de atividades alusiva ao Dia da Consciência Negra, da qual a Aspuv é apoiadora. “A gente tem articulado várias parcerias, agora mesmo é um momento muito importante, que a gente está na construção do Mês da Consciência Negra (…). Esse GT tem congregado os movimentos sociais, que estão juntos. Porque, por mais que tenhamos aqui pessoas estudiosas, pesquisadoras da área dos povos negros e suas pautas, nós não podíamos jamais ignorar que nós temos um movimento iminentemente negro com conhecimento de causa, com suas pautas e com possibilidade de construir conjuntamente as ações e as atividade”, finaliza a presidenta.
Confira aqui a programação completa da semana em Viçosa.
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(Fernanda Ponzio – Assessoria de Comunicação da Aspuv)